I N E X I S T A

There is no use for heads


THERE IS NO USE FOR HEADS

Ela já ia adentrando a caverna, curiosíssima. Sentia uma ânsia por saber o que havia lá dentro; fosse o que fosse, se ao menos descobrisse o que era, "a morte até que não parecia grande preço a pagar", dizia. Imagine o quanto a garota foi repreendida pelos parentes quando pensava dessa maneira; era "menina fecha essa boca" para cá, "chega dessas maluquices, não brinca com coisa séria!" para lá. A resposta, sempre parecida com "a boca é minha, a vida é minha e eu não nasci para agradar ninguém!", filosofia solidamente sustentada pelo argumento "Foda-se!". Pois ela estava convicta de que podia muito bem se cuidar sozinha; deixara de ser criança havia pouco tempo, mas já se sentia uma quase adulta; "e aqueles velhos medrosos, acuados, perdidos em seus temores, escondidos em suas prosaicas cabanas, nunca ousando dar um passo ao exterior do vilarejo? Uns covardes, todos eles! E ainda querem prender as crianças às suas crenças ridículas...", imaginava.
Já ia ela, adentrando a escuridão da caverna e reavaliando as falácias, as lendas, que os velhos do vilarejo propagavam sobre o local. Certa vez, disseram-na que os espíritos dos mortos habitavam ali e saíam à noite a fim de atormentar crianças malcriadas; "Mas não tem cabimento; isso é uma lenda barata para assustar criancinhas estúpidas, mas eu não sou mais uma guria tolinha como já fui, não mais; além disso, este mundo é maravilhoso demais para permanecer desconhecido e grande demais para ser povoado por velhos supersticiosos" pensava a garota enquanto caminhava a passos veementes às profundezas da gruta, mas, de súbito, surgiu à sua vista um clarão, que lhe turvou a visão, contraiu suas pupilas e fê-la fechar os olhos, assustada. Quando finalmente se recuperou do choque, a luminosidade não mais estava visível; a escuridão reinava novamente no interior do ambiente cavernoso. Por um instante temeu que de fato houvesse algo sobrenatural naquele lugar, mas "claro que não..." ela raciocinava, todavia, mesmo não acreditando, tivera de admitir que algo estranho acabara de ocorrer por aquelas redondezas e isso a assustava; e como assustava; decidiu, portanto, sair da caverna. Mesmo estando o ambiente imerso em trevas, seus olhos, após exposição à forte luz, enxergavam manchas policromáticas no fundo negro, deixando-a confusa, perdida num breu de ansiedade "melhor sair, melhor sair...", apressava-se.
ROOOOOOAAAAAAARRRRWWWWWRRRWRRRWRWRWR
E o estrondoso rugido a fez arrepiar-se inteira. As pernas bambearam, sentiu um frio na barriga, as mãos trêmulas, o coração saltando boca afora, os ouvidos alertas para compensar a ausência da visão. Pois no momento em que deu meia volta, viu ali, à sua frente, um homem? Um leão? A jovem, por mais que focalizasse a criatura, não compreendia que tipo de absurdo era aquele; um corpo masculino, já aparentando velhice, encurvado, as roupas empoeiradas, o pescoço segurando uma imensa cabeça de leão com uma juba peluda, brilhante e dourada que iluminava o interior da caverna. Era todo duma surrealidade muito grande, melhor não entrar em detalhes. Perante a abominação, a menina se jogou ao chão gelado e rastejou sobre a superfície pedregosa, na tentativa de se afastar da criatura. O ser, homem, leão ou os dois, não sei, foi caminhando na direção da jovenzinha assim que ela alcançou uma das paredes rochosas e não mais poderia se afastar; seu vestido ficara sujo, os cabelos assanhados, os joelhos arranhados, os olhos amedrontados. E o monstro, num ato imprevisível, falou:
— Esse teu corpo é muito sedutor, menina...
Ela, após tal afirmação, não poderia decidir se ficara mais assustada por ouvir a criatura falar ou pelas palavras por ela proferidas; melhor dizendo, pela ideia impressa nas palavras. "O que essa aberração quer de mim?" pensou e, como que para responder a interrogação, sua imaginação gerou uma série de pensamentos que a repugnavam "isso me quer para... não, isso é paranoia minha" e ela se apressou em contê-los para ocupar a mente com as chances que tinha de evitar qualquer acontecimento que fosse. Ele ia chegando perto, bem perto e continuava dizendo:
— Quem imaginaria que uma garota tão sensual teria coragem de entrar nessa caverna asquerosa?
Os pequenos olhos do leão fitavam atentos às formas da garota que, iluminadas pela juba dourada, tornavam-se mais aparentes, mais atraentes. A jovenzinha, temerosa, procurou qualquer fragmento de luz que pudesse indicar a saída do lugar; olhou à esquerda e à direita, mas nada encontrou; e a cintilante juba leonina chamava-lhe a atenção dos olhos, fazendo com que pequenas luminosidades fossem ofuscadas. Ela já tremia, coitada, mas saiu-lhe a voz trepidante, que dizia:
— Sai daqui, abominação! Não chega mais perto!
A criatura parou imediatamente, analisando o corpo da jovem. Os pequenos pés calçados com umas botas de couro de animal, as canelas finas e delicadas, os joelhos arranhados, vermelhos pelas escoriações, as coxas gráceis, carnudas, o quadril ajustado, o abdômen delgado, o busto proeminente, os ombros harmônicos com restante do corpo, o vestido branco de mangas curtas se estendia até a metade das coxas, os braços eram suaves e frágeis; as mãos ainda tremiam incessantemente. Não mirou o rosto da menina por um simples motivo; a fim de satisfazer seu desejo, não havia utilidade para a cabeça. Toda a atenção que os olhos leoninos davam aos contornos de seu corpo deixou a garota tensa e ainda mais receosa de sua situação; sendo assim, não hesitou em sacar a adaga que guardava todo o tempo num cinto sob o vestido. Ela não sabia bem como empunhá-la, mas levantou-se de súbito e agitou a faca no ar enquanto fingia realizar alguns movimentos das artes mortais. O leão antropomórfico não se intimidou, caminhando na direção da garota a passos largos. No que a criatura se achegou, a jovem interrompeu o fingimento de bravura, e então, num ato desesperado, brandiu sua lâmina, descontrolada, para proteger-se frontalmente do monstro e fez-lhe um corte imenso, contudo não profundo, que percorria o tórax e abdome da criatura, parcelas de seu corpo indubitavelmente humanas. Com um golpe no braço da garota, o ser animalesco tirou-lhe a arma que reluziu à luz da sua juba e desapareceu na região penumbrenta do covil. A criatura não sentiu dor quando foi cortada. A garota, no entanto, foi forçada contra a parede e soltou um grito agudo na vã esperança de que fosse ouvida e resgatada. Ouvida por quem? Resgatada por quem? Ninguém, além dela, entraria na caverna, tida como amaldiçoada. Vilarejo lotado de tolos e covardes, o que ela pensava antes; precavidos, o que ela pensaria agora, se apenas seus instintos de preservação não estivessem frenéticos, negociando com seus frágeis músculos as possibilidades de uma fuga. Somente se deu conta de que não restava mais escapatória depois que os braços da criatura seguraram com força os dela. Não a machucaram, porém prenderam-na firmemente. A respiração leonina assanhava-lhe os cabelos, aquele odor fétido a nauseava. Pois foi este o momento no qual se ouviu novamente a voz da aberração antropomórfica, que, com um curto rugido após cada declaração, pronunciava:
— Percebo que tu não tens doenças...
E começou a apalpar os membros da garota; apertou seus ombros, desceu pelos braços e antebraços, simetricamente, até o punho; analisava a toques impetuosos cada centímetro de seu corpo juvenil e em, em pânico, ela se debatia, todavia, não lograva escapar.
— Tua pele é tão macia...
E Massageou tórax e abdome com apenas uma das mãos, porquanto a outra prendia firmemente o braço direito da donzela; passando os dedos pelo umbigo, em seguida as costelas, as extremidades dos pequenos seios e elevando-se até a região da clavícula, por fim, inseriu as mãos na região das axilas da menina e a distanciou alguns centímetros da parede da caverna, ela, já exausta de tanto se debater, os olhos arregalados, lacrimejantes, ofegava, a boca semi-aberta, o desejo da fuga contrapondo-se à incapacidade de realizá-la.
— Não sei se teu corpo aguenta por muito tempo, mas...
A criatura fitou os olhos umedecidos e a expressão de arrependimento da jovem, que estava prestes a largar um último grito, mas não lhe deu tempo...
— Não me condene por isso, mas eu adoro um corpo jovem como o seu...

Foi rápido;
Escancarou a mandíbula, os dentes afiados,
E comeu-lhe o crânio numa mordida só;
Tirou a cabeça de leão do corpo velho
Pôs a cabeça de leão no corpo novo

2 comentários:

Mariana Souza disse...

puts, que texto tenso! mas não de um jeito que não dar pra parar de ler.. muito bom de ler! amei *-*

Anônimo disse...

Uma delícia de texto.

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